Saturday, November 11, 2006

Assim conheci Luís de Freitas Branco

Luís de Freitas Branco e José Atalaya
em 1947, na praia de Paço d' Arcos
A data que mais venero na minha vida de músico é esta:
25 de Junho de 1947.
Vou recordar, como muitos sabem, o dia em que conheci Luís de Freitas Branco. Nesse dia, tudo ou quase tudo mudou para mim.
Abandonei os meus projectos de cientista - nada menos, tinha os meus aguerridos 19 anos, era assim! Admiraria hoje, se os tivesse, esse admirável Edgar Cardoso - fazedor de ponte única no mundo (por que razão lhe não chamam Ponte Edgar Cardoso, tal como os Franceses o fizeram em relação à Torre Eiffel?).
Regresso à música. Como ia dizendo, graças a Luís de Freitas Branco, esqueci Einstein para me lançar nos braços de Euterpe.
Vou contar o episódio, porque reflecte um dos traços menos conhecidos da personalidade que mais marcou a música portuguesa no século XX.
Eu pouco sabia, nessa altura, da sua riqueza como professor de composição. E passei a querer ser - nada mais, nada menos - um grande músico. Paixão recentíssima, proveniente de programas de rádio. Havia, no entanto, algo que, no íntimo, me preocupava não obstante o colossal atrevimento. Ser sinfonista numa terra destas. Preocupava-me, na verdade, a circunstância de já ir a caminho dos vinte. Não seria tarde de mais para tão ciclópico projecto? Tinha de ouvir a opinião de um especialista.
Ora eu ouvia, pontualmente, todas as quartas-feiras às nove e meia, aquele senhor que não conhecia. Ele ali estava, todas as semanas, no canal da radiodifusão oficial, integrado num projecto cultural assumido pelo então director musical, Pedro do Prado, já desaparecido e ingratamente esquecido pelos músicos, e que consistia em colocar diante de um microfone uma personalidade a falar de história da música.
E Luís de Freitas Branco lá foi falando de Wagner durante mais de uma ano! Falava, obviamente, com extrema simplicidade dos temas mais complexos. E o País escutava-o maravilhado. Eu também, como disse. Resolvi consultá-lo!
Apresentei-me. Simples ouvinte, tinha-me apaixonado subitamente pela música clássica aos 17 anos. Queria saber se aos 19 seria demasiado tarde para poder vir a ser um grande compositor! E fazia-lhe esta pergunta porque ouvira pela Emissora Nacional a estreia de uma sinfonia (palavra mágica) de um jovem compositor português de vinte e poucos anos, chamado Joly Braga Santos, o qual fora seu discípulo.
Afinal (extraordinária revelação!), Freitas Branco era também um mestre à maneira dos pintores do Renascimento, cercado de discípulos que lhe bebiam os gestos, as palavras!
Luís de Freitas Branco, com aquele meio sorriso (único) de homem superior, de aristocrata, impregnado de alguma altivez mas infinitamente bondoso, disse-me mais ou menos isto:
Mas o que é que o senhor sabe? Não me atrapalhei demasiado, apesar de saber muitissimo pouco. O que me salvou, julgo, foi ter começado a cantar baixinho, de improviso, naquele velho corredor da velha Emissora Nacional (hoje Radiodifusão Portuguesa), temas de sinfonias de Beethoven!
Fizera-o instintivamente, julgo, para lhe mostar que, ao menos, conhecia e devorava tudo quanto era boa música.
Vi então aquele brilho intenso nos seus olhos - e que ainda hoje não esqueço. Disse-me qualquer coisa acerca de Tchaikovsky e de Stravinsky, que decidiram tarde, como eu (imagine-se!), ser compositores. E acabou dizendo-me estas palavras:
Vejo que a sua paixão pela música é pura, verdadeira e muito forte. É quanto basta. Se quiser, poderei - a partir deste momento - ser seu professor de composição. Procure-me em minha casa (Luís de Freitas Branco havia sido demitido do Conservatório Nacional por razões políticas e de ordem pessoal), vivo em Paço de Arcos.
Tive a sensação de que o universo desabava sobre mim. Tinha 19 anos. Naquela noite, a minha vida mudou!
Foi assim que conheci Luís de Freitas Branco.
Bem haja, querido mestre e amigo!
_____________
Labirintos da Música
Caixotim Edições


"Sê a mudança que queres ver no mundo"
Gandhi